Os carros e os peões (4)



Preocupa-me muito a forma como os adultos de hoje encaram a relação crianças-rua-espaço comum-carros. Nasci no Porto em 1971, vivi até aos nove anos quase no meio da cidade, numa rua relativamente tranquila. A partir dos 5-6 anos brincava na rua com os meus amigos, sem supervisão de pais ou adultos. Jogávamos à bola no asfalto, corríamos para um descampado onde no Verão apareciam os tipos dos carros de choque, saltávamos as grades da escola secundária e íamos lá para dentro brincar. Tinha ordens para chegar a casa antes de escurecer. Se a memória não me atraiçoa aos 6-7 anos ia a pé sozinho para a Escola (a 300 metros da porta de casa). Tudo isto no Porto, fim dos anos 7o. Lembro-me também que a minha irmã, aos 5-6 anos ia sendo atropelada por um taxista. Repentinamente atravessou a rua, coisas de criança Mas, como a rua era pouco dada a velocidades, dadas as naturais barreiras arquitectónicas, nada sucedeu. O maior inimigo da minha irmã acabou por ser um cão. Estava preso, soltou-se e atacou a criança... às vezes o perigo está onde menos se espera.
Lembro-me também de que a partir dos 10 anos, nas Alhadas, passar as tardes livres de escola ao ar livre i.e. a andar de bicicleta, a jogar à bola com os miúdos da aldeia , a vaguear pelos campos...

Hoje, na Figueira da Foz (uma das cidades menos violentas da Europa...e do mundo, provavelmente ! ) a Escola é ali ao lado, mas os meus sobrinhos (7 e 11 anos) ainda vão acompanhados para a Escola. Os medos são muitos, alguns na minha opinião infundados, e as crianças não desfrutam da rua...são a back seat - play station - generation !
Como sou treinador de minibasket de miúdos de 8-11 anos, posso avaliar a elevada conflitualidade entre eles (além de muito quezilentos), um tempo de atenção muito reduzido (hiperactividade)e falhas graves (iniciais) no respeito pela autoridade do adulto.
Deixo abaixo um texto elucidativo do Eng. Mário J. Alves.


A mobilidade e as crianças
Temos construído as nossas cidades a pensar mais no automóvel que nas
crianças. As crianças não têm a possibilidade de ter carta de condução. Esta
verdade evidente parece esquecida no desenho das nossas cidades. Como dizia Enrique Peñalosa num discurso ao Banco Mundial, vivemos numa sociedade que sabe perfeitamente qual é o melhor ambiente para um gorila ou uma baleia mas tem dificuldades em construir um melhor ambiente para criar uma criança feliz. A autonomia e a possibilidade que uma criança tem de explorar o mundo que a
deia são elementos fundamentais para o seu desenvolvimento físico e
psíquico. Com o compreensível desejo de as proteger, estamos a criar uma geração inteira que se movimenta de garagem em garagem – a já chama“back-seat generation”. Do seu banco traseiro e ávida de “aprender o mundo criança conhece melhor as marcas dos automóveis que os nomes das arvores. Saltar muros, roubar fruta, tocar às campainhas e fugir são todas as actividades que se perderam nas últimas décadas. No entanto, se perguntarmos a uma classe de crianças de que forma gostariam mais de vir para a escola a resposta é sempre de bicicleta ou a pé. Nos últimos anos as crianças estão em risco de crescer isoladas do mundo e dos amigos. A protecção dos pais é compreensível: Portugal tem recordes verdadeiramente trágicos de mortes na estrada para qualquer grupo etário, mas são principalmente os mais jovens são vítimas dos condutores.

in "Os peões, os passeios e as “causas comuns”

Mário J. Alves, Engenheiro Civil pelo Instituto Superior Técnico com o grau de Mestre em Transportes pelo Imperial College London. Trabalhou no Centro de Sistemas Urbanos e Regionais da Universidade Técnica de Lisboa e no Centre for Transport Studies of the University of London como Investigador Associado. Como consultor de transportes e gestão da mobilidade foi coordenador operacional do Plano de Mobilidade de Almada. Escreveu artigos e fez inúmeras comunicações e seminários em vários países europeus sobre diversas temáticas relacionadas com transportes e mobilidade sustentável.

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