Bio-escravatura

A bio-escravatura ou as ameaças da apropriação monopolística da vida humana

      Texto de autoria de Annelore Hoffens Wenzem, publicado na edição castelhana de Abril-Maio e Junho de 2004 da revista The Ecologist.

Retirado de: http://pimentanegra.blogspot.com/ - Consultar: http://www.etcgroup.org/en/


Hoje um agricultor, dono de uma plantação de milho, pode decidir regar ou não as suas culturas simplesmente recorrendo ao seu correio electrónico, pois a mesma plantação, através de um sistema de sensores remotos e de telefone celular, pode enviar-lhe os sinais vitais do que lhe está a acontecer. Sentado no sofá da sua casa esse agricultor poderá activar i sistema de risco automático através do seu computador caso o sinal recebido no seu e-mail indicar a carência de água. O mesmo agricultor, caso queira proteger as suas plantações de uma possível contaminação genética procedente de qualquer outra cultura vizinha de milho, pode também usar sementes às quais tenha sido incorporado um «barreira genética» no seu ADN. Graças a isso a planta não poderá cruzar-se por polinização com outras variedades da sua espécie. Por outro lado, as empresas biotecnológicas podem saber, utilizando as tecnologias adequadas, o que o referido agricultor está a plantar, e em que medida…Com os avanços tecnológicos tudo fica sob controle e, principalmente, ao serviço, do mercado controlado pelos mais fortes, isto é, pelas grandes transnacionais. O que acontece, no fundo, é que os agricultores ficam dependentes de uma poucas empresas que oligarquicamente controlarão o mercado das sementes modificadas geneticamente, os produtos químicos que lhes estão associados, assim como grande parte dos processos de produção, já para não falar dos processos políticos e legislativos a eles respeitantes.

Fantasia futurista?

Poderíamos dar muitos mais exemplos de tecnologias e biotecnologias de vanguarda que parecem estar ao serviço das melhorias agrárias, da produção dos alimentos primários, da redução dos custos e da eficiência de recursos; tecnologias que há uns anos atrás nos teriam fascinado por parecerem uma fantasia futurista, mas a verdade é que hoje tais tecnologias já se encontram no mercado.
O que parecia ser ficção científica é realmente a face oculta dos interesses que as empresas transnacionais como a Monsanto, Pioneer ou a Syngenta ao mostrarem tanto interesse nas invenções e no investimento biotecnológico. Durante as últimas décadas a indústria da biotecnologia consolidou-se graças ao sistema de Patentes de Propriedade Intelectual e que permitiu às empresas assenhorear-se das plantas, genes, traços e processos biológicos estratégicos. À medida que aumentavam as descobertas e as novas invenções, aumentava também p número de solicitações de patentes por parte das empresas mais poderosas que, desta forma, iam promovendo o monopólio sobre as distintas formas de vida. Só em relação à indústria de biotecnologia e farmacêutica, por exemplo, nos Estados Unidos entre 1995 e 1999, empresas como a Glaxo-Smith-Kline obteve 208 patentes, a Pharmacia obteve 332. E só no ano 2000 a Merck recebeu 265, enquanto a AstraZeneca registou 204 patentes.

Rejeição social

Perante as críticas sociais e políticas que começaram a cair sobre o sistema de Patentes ou de Propriedade Intelectual como meios de apropriação da biodiversidade, as grandes empresas já não confiam nesse sistema, pois tais críticas podem modificar a todo o momento a legislação. Alertadas, essas empresas reagiram rapidamente e começaram a desenvolver e incorporar novos mecanismos para garantir o completo controle monopolista das biotecnologias.
Em alusão ao fenómeno histórico das «enclosures» (confinamentos; construção de muros e delimitação das propriedades privadas), ocorrido na Europa nos séculos XVII e XVIII, de privatização e de construção de muros dos terrenos e recursos outrora comunitários, os actuais desenvolvimentos protagonizados pela industria biotecnológica para privatizar o material vivo tem vindo a qualificarem-se como os «novos enclosures».

A bio-escravatura


Sob a designação genérica de «novos enclosures» referimo-nos às tecnologias em constante evolução, utilizadas para identificar e controlar o território e o germoplasma ou plasma germinativo, células germinativas ou simplesmente a matéria viva. Ao mesmo tempo que promevem a bio-escravatura, tais tecnologias ajudam e facilitam a consolidação do poder das grandes corporações transnacionais e minam a soberania nacional.. Os novos confinamentos ( as novas enclosures) envolvem um conjunto diverso de tecnologias que vão da biotecnologia à micro-electrónica; dos sensores remotos à robótica, sem esquecer as tecnologias de informação geoespacial, e muito mais…
Os mecanismos dos «novos confinamentos» ( as novas enclosures) foram classificadas em 3 categorias: a) as biotecnologias usadas para obter o monopólio biológico da matéria viva ou germoplasma; b) os contratos legais para obter o controle absoluto sobre a mesma matéria, assim como sobre a tecnologia e a investigação a ela aplicada; c) as tecnologias de sensores remotos e biosensores que, com a primeira categoria, controlam o uso e/ou a presença do germoplasma, o terreno e o trabalho.

A) Como conseguir o monopólio biológico da vida?

Suponhamos que o agricultor do nosso exemplo compre sementes de milho a uma empresa e que essas sementes possuam tecnologia de Restrição ao Uso Genético, isto é, que no seu ADN tenha sido incorporados activadores genéticos que, por sua vez, activem químicos externos ( que a mesma empresa também vende) para controlar certas características genéticas da planta. Suponhamos que tais sementes, geneticamente manipuladas, foram feitas para desactivar a sua capacidade de fertilidade no ano seguinte, ou seja, no próximo ciclo, obrigando o agricultor a comprar novas sementes. A este processo, segundo o qual a empresa obriga os agricultores a comprarem-lhe as sementes e seus produtos derivados, dá-se o nome de bio-escravatura.


B) Contratos legais para condicionar o uso de tecnologias


Para além da dependência que as tecnologias de Restrição de uso Genético produzem, o agricultor assina, no momento de compra das sementes, um contrato com a empresa que envolve os Acordos de Uso da tecnologia adquirida. Um contrato destes pode ter cláusulas mediante as quais o comprador perde os direitos de privacidade, autorizando a empresa a rever a informação acerca das suas culturas, utilizar fotografias aéreas e controlar as facturas de compras de sementes e agroquímicos. Além de que o comprador poderá ter que se submeter à cláusula da «garantia limitada exclusiva» que diminuirá significativamente a responsabilidade legal da empresa vendedora sobre quaisquer prejuízos que se possam dar pelo uso e manipulação do produto adquirido. É justamente o caso dos agricultores que no ano de 2001 utilizaram as tecnologias da Monsanto para o ano de 2001 pois que tiveram de assinar contratos com cláusulas em que se estabelecia que em nenhuma circunstância de poderá processar a empresa Monsanto por danos, acidentes ou consequências derivadas do uso daquelas tecnologias (sementes).
Por outro lado é também muito preocupante os acordos que se estabelecem entre a indústria e as universidades. É certo que as relações entre as ambas não datam de ontem, mas não é menos verdade que nos últimos anos tais relações se intensificaram e, por vezes, com muita pouca transparência. Segundo William Lacey, vice-reitor da Universidade da Califórnia em Davis, alguns presentes legais e contratuais entre universidades e indústrias incluem grandes doações ou outorgas de contratos por parte das empresas privadas às universidades, em troca dos direitos de patente e licencias exclusivas para usar as descobertas; há ainda a criação ou organização de centros ou programas universitários com fundos industriais, em troca do acesso privilegiado das empresas privadas aos recursos universitários, bem como à possibilidade de assumir um papel influente no desenho dos programas de investigação; permite-se ainda o desempenho dos docente como consultores, assessores científicos ou gerentes nas empresas contratantes, ou a criação de organismo mistos com fins lucrativos para comercializar os resultados de determinada investigação. Através deste tipo de acordos a tecnologia e o conhecimento estão a ser apropriados e transferidos do sector público para as grandes empresas privadas.

C) Sensores remotos e biosensores: em direcção ao controle total


Todo este quadro de poder e controle sobre a matéria viva por parte das grandes empresas completa-se quando se verifica e se toma conhecimento que já existem, e estão em vias de desenvolvimento, certas tecnologias e biotecnologias que permitem monitorizar e controlar a presença e o uso dos produtos já patenteados e vendidos mediante um contrato legal aos agricultores. Estamos a referirmo-nos, por um lado, aos aparelhos sensores remotos que obtêm e medem os dados de um objecto por intermédio de instrumentos que não estão em contacto físico com ele, como é o caso dos satélites; e por outro lado, aos biosensores que são capazes de fazer uma leitura do ADN das sementes, plantas ou alimentos, identificando qualquer mudança que tenha sido efectuada no seu material genético.
No exemplo dado no início deste texto, o agricultor recebe no seu correio electrónico os sinais vitais da sua plantação de milho graças a instrumentos sem cabos, com termómetros infra-vermelhos do tamanho de um lápis e capazes de transmitir informações a partir de um telefone celular à Internet. O instrumento chama-se Biotic, pertence ao Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, e é um dos vários avanços tecnológicos de sensores remotos que, juntamente com a tecnologia de satélites e geoespacial, apareceram com o início do século XXI.
Se tais tecnologias de sensores remotos e informação geoespacial um grande potencial para beneficiar a agricultura, por outro lado, constituem uma real ameaça aos direitos dos agricultores e das comunidades agrícolas, pois tais tecnologias podem ser utilizadas pelas empresas e governos para controlar o cumprimentos dos contratos, identificar e monitorizar o germoplasma, o próprio território e trabalho.
Os biosensores, por seu lado, tiveram um importante papel na controvérsia sobre os alimentos geneticamente modificados e a propósito da crescente preocupação acerca do fluxo não desejado de genes não modificados. Esta controvérsia significou o aumento de pedidos de provas para detectar se um produto processado a partir de uma planta contém ou não um sequência de ADN artificialmente enxertada, e em que medida está ela presente. Acontece que esta tecnologia para detectar genes modificados não é usada só pelas organizações da sociedade civil, pelos inspectores governamentais e processadores de alimentos para determinar a presença e a quantidade de ingredientes transgénicos nos alimentos, como também pelas empresas gigantes como a Monsanto ( GM tet kids) a fim de verificar se os agricultores ou os concorrentes estão a usar as suas sementes, infringindo as patentes registadas em seu proveito. Caso isso se confirme o passo seguinte será a abertura de um processo judicial aos agricultores ( Monsanto já desencadeou mais de 475 por suposta violação de patentes).

Testes de Diagnóstico

GeneticID ( Iowa, Estados Unidos) produziu os primeiros testes para efeitos de diagnóstico comercial dos cultivos transgénicos em 1996. No ano seguinte DuPont formou a sua própria subsidiária, DuPont Quaulicon, para comercializar as provas biotecnológicas com os processadores de alimentos, a fim de «assegurar a autenticidade dos ingredientes na cadeia». Hoje, a geração de tecnologias de biocensores cresce ao mesmo tempo que as culturas transgénicas, oferecendo métodos capazes de detectar proteínas de ADN não só em sementes e grãos mas também no nariz e nos alimentos altamente processados.
Esta novas tecnologias e biotecnologias reforçam o poder sobre o sistema de Propriedade Intelectual permitindo estender a dominação das corporações sobre os produtos e processos. Seria tempo dos governos reagirem e examinarem e actuarem perante as novas configurações económicas, os mecanismos e os «novos confinamentos» que, em conjunto com as novas tecnologias, estão a construir as novas estratégias para o controle monopolístico das grandes empresas. Caso isso não aconteça o mais provável é que os termos e as condições de biosegurança alimentar sejam ditadas pelas indústria do sector. E não faltará muito para que sejam as grandes empresas a impor aos agricultores o que estes hão-de plantar e quando.

Pior ainda: como escapar a tudo isso se o sistema dispõe de tecnologias de controle sobre todos as fases e processos da vida?
Em nome da diversidade cultural e da liberdade dos agricultores e dos consumidores é preciso dizer, mais do que nunca, não! Não às modificações genéticas.


Texto de autoria de Annelore Hoffens Wenzem, publicado na edição castelhana de Abril-Maio e Junho de 2004 da revista The Ecologist.

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